sábado, 7 de junho de 2008

Rotina espartana faz do Quênia pátria de fundistas


domingo, 01 de junho de 2008
OBRIGADOS A PERCORRER VÁRIOS QUILÔMETROS POR FALTA DE INFRA-ESTRUTURA, QUENIANOS APRENDEM A CORRER DESDE CEDO E SÃO LAPIDADOS NOS COLÉGIOS PARA SE TORNAREM ATLETAS


Isaac Songok, 24, enxuga o suor e segue adiante sob o forte calor. O termômetro acusa pouco mais de 25C, mas a sensação é de temperatura bem mais elevada diante do descampado e do ar seco.

Ocasionalmente, uma caminhonete passa, levantando nuvem de poeira vermelha pelo caminho dos corredores.

São pouco mais de 6h, e o treino prossegue pelas estradas de terra em Iten, vilarejo do Rift Valley (oeste do Quênia).

Vice-campeão africano dos 5.000 m em maio -perdeu só para o recordista mundial, Kenenisa Bekele-, Songok raramente corre em um piso oficial.

"Treino sempre na terra. A pista mais próxima é em Eldoret [a 30 km de Iten], mas é difícil ir para lá", diz o queniano, pré-selecionado para Pequim.

A região de Eldoret concentra a maioria dos fundistas de elite do país, considerado a pátria das corridas de média e longa distâncias. Nenhuma nação ostenta tal domínio em percursos que variam dos 800 m em pista aos 42,195 km na rua.

"De 60 maratonas, vencemos 56 em 2007", contabiliza Isaiah Kiplagat, presidente da Federação Queniana de Atletismo.

Qual é a explicação para isso? Para o técnico Colm O'Connell, a questão é complexa. Ex-padre irlandês (como o que derrubou Vanderlei Cordeiro de Lima na maratona de Atenas-2004), radicado há 32 anos no Quênia, O'Connell acredita que não há uma razão isolada.

"Vou lhe fazer a mesma pergunta: "Por que o Brasil é tão bom no futebol?". Ninguém pode dizer com 100% de certeza porque um país produz atletas com uma habilidade específica", diz. "Pode ser o ambiente, a sociedade, a tradição, o clima, a alimentação... Talvez a genética. Mas acho impossível alguém dizer um dia que foi descoberto o gene da corrida."

Se houver tal achado, sem dúvida estará presente entre os kalenjins, uma das 42 tribos que convivem no Quênia em relativa harmonia -quebrada neste ano com graves conflitos após as eleições presidenciais.

Pertencem a esse grupo cerca de 80% dos atletas de elite do país. São kalenjins Robert Cheruiyot, quatro vezes vencedor da Maratona de Boston, Bernard Lagat, campeão mundial dos 1.500 m e dos 5.000 m, e Paul Tergat, o primeiro corredor a cumprir os 42,195 km em menos de 125 minutos.

"Essa tribo se originou no Sudão. Hoje também habita regiões de Tanzânia e Uganda. E, nesses países, não há atletas como os nossos", rebate Kiplagat.

Para muitos, um fator que faz o território tão especial é a altitude das cercanias de Eldoret, entre 2.100 m e 2.700 m, o que favoreceria os treinos. Países com altitudes até maiores, como Bolívia e Nepal, no entanto, jamais produziram atletas da qualidade dos quenianos.

A alimentação, por sua vez, também não apresenta características assim tão especiais."

Aí está o nosso segredo: leite, carne e frutas", ironiza Stephen Mwaniki, guia do Museu do Atletismo do Quênia, mostrando quadro explicativo sobre o cardápio dos corredores.

Talvez o que faça da nação especial passe pelas crianças. É difundida a história de que os kalenjins percorrem, desde pequenos, largas distâncias de suas casas, em áreas rurais afastadas, até os colégios. Membros da tribo se dedicam ao cultivo de café e chá.

"Eles crescem treinando, mesmo sem saber. Não há ônibus escolar nas áreas rurais. Então, vão a pé. A criança tem que correr para não chegar atrasada à escola, onde existe inclusive punição corporal. Há muita motivação para estar lá a tempo", comenta Lisa Buster, agente de atletas quenianos.

Além disso, muitas vezes os jovens vão para casa almoçar, antes de voltar ao colégio para as aulas da tarde, percorrendo o trajeto quatro vezes ao dia.

"Corria 10 km até a escola e voltava. Sem saber, fazia uma meia-maratona por dia", diz Moses Tanui, bi da Maratona de Boston, primeiro a correr os 21,1 km em menos de uma hora.

A situação é recorrente nas biografias dos astros das pistas e ruas. Paul Tergat completava 10 km até o colégio. Catherine Ndereba, bicampeã mundial de maratona, superava outros 4 km. E, por incrível que pareça, a melhoria das condições de vida do povo causa preocupação.

"Hoje muitas crianças vão à escola em veículos do governo. Os ônibus escolares irão matar nosso atletismo no futuro", brinca Ndereba, sem deixar de expressar um certo grau de preocupação com o fato.

Forjado em provas estudantis, muito populares no país, o agora técnico Tanui, que coordena campo de treinamento em Kaptagat (perto de Eldoret), afirma que o diferencial dos quenianos é a preparação.

"Aqui se treina mais duro do que em qualquer outro lugar."

Para Songok, corredor citado no início deste texto, a afirmação é verdadeira. "Corro até 100 km por semana. E minha prova são os 5.000 m. Os maratonistas, muito mais."

O'Connell diz que não basta matéria-prima de primeira. São necessários treinos duros, geralmente associados à rotina espartana da população rural.

No Quênia, há atletas de elite que vivem em alojamentos acanhados e levam vida bem simples. "Só talento não adianta. É necessário desenvolvê-lo. Esse é o meu papel", conta, mostrando que nem todo ex-padre irlandês é uma ameaça a corredores.0(ADALBERTO LEISTER FILHO)


QUENIANOS TÊM 74 TÍTULOS EM MARATONAS IMPORTANTES

A tradição queniana em maratonas é recente. O país só foi obter as primeiras vitórias importantes em 1987, com os triunfos de Ibrahim Hussein (Nova York) e Douglas Wakiihuri (Mundial de Roma). No total, foram 74 títulos no circuito das principais provas de 42,195 km do planeta (Nova York, Boston, Chicago, Berlim, Paris, Londres, Mundial e Olimpíada)


Paul Tergat

Apelidado de Cavalheiro, o pentacampeão da São Silvestre foi recordista mundial dos 10.000 m e da maratona. Na primeira prova, ganhou duas pratas em Olimpíadas e em Mundiais. Ficou sempre atrás do etíope Haile Gebrselassie, que também roubou seus dois recordes


10

das 15 melhores marcas da história nos 800 m foram feitas por Wilson Kipketer, Sammy Koskei e Wilfred Bungei. O trio nasceu no oeste do Quênia, a uma distância de 5 km um do outro


83%

das medalhas dos 3.000 m com obstáculos em Mundiais foram conquistadas por atletas de origem queniana. Todos os campeões da prova nasceram no país. Nenhuma nação tem domínio semelhante em prova alguma do atletismo


DISPUTA ESTATAL DÁ EMPREGO A CORREDORES

O Estado ajuda os atletas empregando-os na polícia, no Exército, na Força Aérea e em prisões. Os torneios entre essas forças são populares. Atletas conhecidos têm empregos públicos. Assim, Paul Tergat é sargento da Força Aérea, William Yampoy é policial, Catherina Ndereba trabalha nas prisões, e John Ngugi, no Exército


Frase

"Como explicar nosso domínio nas provas de média e longa distâncias?É a criação. É Deus"
ISAIAH KIPLAGAT presidente da Federação Queniana de Atletismo


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