sexta-feira, 25 de abril de 2008

Tocando de olhos fechados

22/04
Reportagem acompanha o deficiente visual Messias Gomes, de Sorocaba, até o Conservatório de Tatuí; escola é uma das únicas do Brasil a oferecer curso de musicografia em braile
Às 6h da manhã, a reportagem do Mais Cruzeiro já estava em frente à casa de Messias Gomes, no Bairro Santo André 2, Zona Norte da cidade. De camisa bem passada e barba feita - ele tinha acordado às 4h da manhã para realizar a tarefa - Messias veio atender a porta tateando o chão com a bengala. Tem alguém aí com você, Juliana?. Ao saber da presença do fotógrafo Emídio, simpático e comunicativo, logo estendeu a mão para o cumprimento.
Messias, que nasceu com graves problemas de visão e ficou completamente cego há cerca de 14 anos, estava acompanhado da esposa Lurdinha, responsável pelo alinho do marido. Ela ainda enxerga um pouquinho. Tem 5% de visão. Mas cuida muito bem da casa. Lava, cozinha e até passa as minhas camisas. As pessoas ficam surpresas, mas nossa casa é bem arrumadinha, tratou logo de explicar.
Era terça-feira, dia especial na rotina de Messias, quando vai sozinho rumo ao Conservatório Dramático e Musical Dr. Carlos de Campos, de Tatuí, onde faz aulas de violão clássico e musicografia em braile.
Munido de sua bengala e uma boa dose de coragem, Messias pega ônibus - só para chegar ao Conservatório são três conduções -, atravessa ruas perigosas, enfrenta esburacadas calçadas e outras pedras no meio do caminho para estudar música, um sonho de infância. Além de determinação, conto também com a solidariedade das pessoas; muitas que encontro nesse caminho já se tornaram grandes amigas.
A reportagem do Cruzeiro do Sul resolveu acompanhar Messias por esse percurso até o Conservatório com o objetivo de flagrar as dificuldades enfrentadas pelo deficiente visual para se locomover na cidade. Vocês poderão sentir na pele o que enfrentamos. Poderão notar que a sociedade ainda não está completamente preparada para receber bem a gente, adiantou.
Já na rua de sua casa - (Isis de Camargo Barros Martins) - as dificuldades começam a aparecer: a calçada é completamente esburacada. Eu tenho que ir pelo meio da rua, não tem outro jeito. Se eu for pela calçada, de péssima qualidade, corro o risco de cair. Portanto, tenho que correr esse perigo, fazer o quê, né?.
Atento aos sons dos carros - a gente acaba aguçando os outros quatro sentidos - Messias atravessa a rua até o ponto de ônibus. Agora é só esperar. Peço pra alguém me avisar quando o meu ônibus chega. Sempre alguém ajuda. Quem tem boca vai a Roma, bem sabe Messias.
Assim que subimos no ônibus, ele, que é extremamente comunicativo, começa a falar sobre sua filha Nathaly - com ‘h e ‘y, bem americano mesmo - que está com 9 anos. O médico disse que nossa filha pode até ser astrounauta de tanto que enxerga bem, diz sem esconder o orgulho. Acho chato quando as pessoas ficam impressionadas ao saberem que sou casado e que tenho uma filha, sendo que a mãe também é deficiente visual. Nossa vida é normal. A gente faz tudo que os outros fazem.
Enquanto fala de Nathaly - no meu sonho, eu já vi o rosto dela. Era linda - e outras alegrias de sua vida, Messias abruptamente interrompe a conversa e avisa: temos que descer. Já é o nosso ponto.
Messias se localiza, impressionantemente bem, pelas lombadas, curvas e semáforos. Você acha que eu não estou atento? Eu sinto tudo e sei muito bem onde estou. É um outro tipo de percepção que a gente desenvolve.
Com dificuldade para chegar até a porta do ônibus, que estava lotado, Messias acaba não conseguindo descer no ponto certo. Os que estavam no ônibus ainda gritaram para que o motorista aguardasse Messias descer, em vão. As pessoas não estão preparadas para lidar com a gente. Você viu esse motorista? Nem teve a sensibilidade de esperar eu descer. Demoro um pouquinho mais mesmo. Eles nem percebem e muitas vezes não respeitam.
Como desceu no ponto errado, Messias teve que se reorientar para não se perder. Dessa vez é sorte que vocês estão por aqui, senão, eu teria que dar um jeito de me virar e achar ajuda. Isso, às vezes, acontece. Mas o grande segredo é não se desesperar. Trabalhar a psicologia para controlar o medo.
Depois de atravessar duas avenidas bastante movimentadas (Comendador Oeterer e Ermelindo Matarazzo), Messias chega até o ponto de ônibus em que pegará um circular até Iperó. Eu pego circulares porque daí não preciso pagar a passagem. É de graça pra mim. É mais longe e mais demorado, mas é mais econômico pra gente que vive de aposentadoria, justificou.
No ponto, Messias é logo abordado por uma amiga. Bom dia, Messias, é a Neuza. Sem esconder a alegria de reencontrar a amiga de ponto, Messias explica que Dona Neuza é uma das pessoas que o ajuda na hora de pegar o ônibus certo. Ela fica atenta aos letreiros dos ônibus. Tem dia que o próprio motorista já pára pra mim, porque me conhece e sabe pra onde estou indo. Tem muita gente boa nesse mundo, menina.
No caminho até Iperó, Messias conta como começou a dedilhar as primeiras notas no violão. Tudo começou quando ouvia um som bonito vindo de uma casa vizinha a Associação Sorocabana de Atividades para Deficientes Visuais (ASAC), onde freqüentou por muitos anos e também conheceu Lurdinha. A música era do violão de Paulo Madureira Pinto, que assim que viu Messias parado em frente a casa convidou-o a entrar. Daí, com o incentivo dele, comecei a tocar. Ele foi meu primeiro professor. Só para eu conseguir tocar ‘Parabéns a você foram seis meses de estudo.
Assim que ficou mais habilidoso com as cordas, resolveu encarar o teste para entrar no Conservatório de Tatuí. Era meu sonho estudar lá. É a melhor escola de música do país.
Messias foi aprovado - uma surpresa maravilhosa - e há cerca de três anos estuda no local. Na hora em que estou tocando, esqueço das coisas tristes do mundo. É hora também de trabalhar os meus sentimentos.
Messias - que é fã de Carpinters, Beatles, Madonna e também de clássicos da música instrumental brasileira - é bastante metódico nos estudos e reserva pelo menos três horas do dia para se dedicar ao violão.
Há menos de um ano, o Conservatório abriu o curso de musicografia em braile, um dos únicos no país, o que facilitou a aprendizagem de Messias (leia mais nesta página). É bem difícil, mas vai facilitar bastante a minha evolução musical. Estou ainda em processo de aprendizagem. Por isso, ainda é preciso guardar todas as músicas na memória, já que ainda não lê muito bem as partituras em braile. Eu ainda gravo as aulas numa fita e, em casa, de ouvido, tento tirar a música, já que ainda tenho dificuldade em ler a partitura. Pra gente, é preciso ter uma ótima memória.
Com sua ótima memória, Messias logo se orienta na rodoviária de Iperó. Agora, teremos que pegar o próximo circular até Tatuí. Durante a viagem, aproveita para relembrar do dia em que fez sua apresentação no Teatro Procópio Ferreira, em Tatuí. Umas duzentas pessoas me assistiram. Foi muito emocionante. Existe uma idéia no Conservatório de fazer uma banda só de deficientes visuais. Ia ser uma grande inovação.
Chegando na rodoviária de Tatuí, Messias, sem esconder o entusiasmo de estar acompanhado pela reportagem do Cruzeiro do Sul, foi logo dando Bom dia aos amigos da rodoviária: quem é que vai me ajudar hoje?. Maria José Fonseca, funcionária da rodoviária, logo se prontifica a dar uma mãozinha. Estava com muiiiita saudade de você, Messias. Mas como você traz o Cruzeiro do Sul e nem me avisa para eu ir ao cabeleireiro fazer um penteado e uma maquiagem? Quero sair bonita nas fotos, brinca a bem humorada Zezé.
A senhora ajuda Messias a atravessar as avenidas mais movimentadas até um Posto de Gasolina próximo ao local. Agora, daqui pra frente, que é menos perigoso, ele vai sozinho. Não posso me afastar muito do trabalho, explica Zezé.
No posto, Messias já chama pelo frentista Ivo Camargo Sobrinho. Ô Ivo, cadê você?. Ivo ajuda a atravessar as ruas na hora da volta.
Arrumando a camisa não está muito abarrotada?, Messias prossegue até um dos prédios que fazem parte do conjunto do Conservatório, onde faz as aulas de violão. Não fiquem preocupados, sei que estamos no caminho certo, passamos por um escritório que fica no caminho. Ouvi o barulho da máquina de escrever.
Chegando no Conservatório, Messias é recebido com muito carinho pelos profissionais. Como você está bonita!, brinca com uma das funcionárias.
Sob a orientação especial da professora Angela Muner, Messias, finalmente, mostra à reportagem um pouco de sua habilidade ao violão. Com sensibilidade e muita técnica, executa Rancheria, de Isaías Sávio, e Tema para Adeline, de Mateus Carcassi. Está indo muito bem Messias, incentiva a professora, que é considerada uma das melhores violonistas do país. Pode-se dizer que as músicas são tocadas, literalmente e figurativamente, de olhos fechados por Messias. Estou muito emocionado, não disfarçou.
http://www.cruzeirodosul.inf.br/materia.phl?editoria=42&id=80900

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