quarta-feira, 21 de abril de 2010

Textos 2º ano

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo.

O que é o existencialismo?[...]

O que torna as coisas complicadas é a existência de dois tipos de existencialistas: por um lado, os cristãos [...] e, por outro, os ateus [...]. O que eles têm em comum é simplesmente o fato de todos considerarem que a existência precede a essência, ou, se se preferir, que é necessário partir da subjetividade. O que significa isso exatamente?

Consideremos um objeto fabricado, como, por exemplo, um livro ou um corta-papel; esse objeto foi fabricado por um artífice que se inspirou num conceito; tinha, como referencias, o conceito de corta-papel assim como determinada técnica de produção, que faz parte do conceito e que, no fundo, é uma receita. Desse modo, o corta-papel é, simultaneamente, um objeto que é produzido de certa maneira e que, por outro lado, tem uma utilidade definida: seria impossível imaginarmos um homem que produzisse um corta-papel sem saber para que tal objeto iria servir. Podemos assim afirmar que, no caso do corta-papel, a essência – ou seja, o conjunto das técnicas e das qualidades que permitem a sua produção e definição – precede a existência; e desse modo, também, a presença de tal corta-papel ou de tal livro na minha frente é determinada. Eis aqui uma visão técnica do mundo em função da qual podemos afirmar que a produção precede a existência.

[...]

O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Afirma que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito: este ser é o homem, ou, como diz Heidegger, a realidade humana. O que significa, aqui, dizer que a existência precede a essência? Significa que, em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim, não existe natureza humana, já que não existe um Deus para concebê-la. O homem é tão-somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se quer; como ele se concebe após a existência, como ele se quer após esse impulso para a existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo. É também a isso que chamamos de subjetividade: a subjetividade de que nos acusam. Porém, nada mais queremos dizer senão que a dignidade do homem é maior do que a da pedra ou da mesa. Pois queremos dizer que o homem, antes de mais nada, existe, ou seja, o homem é, antes de mais nada, aquilo que se projeta num futuro, e que tem consciência de estar se projetando no futuro. De início, o homem é um projeto que se vive a si mesmo subjetivamente ao invés de musgo, podridão ou couve-flor; nada existe antes desse projeto; não há nenhuma inteligibilidade no céu, e o homem será apenas o que ele projetou ser. Não o que ele quis ser, pois entendemos vulgarmente o querer como uma decisão consciente que, para quase todos nós, é posterior àquilo que fizemos de nós mesmos. Eu quero aderir a um partido, escrever um livro, casar-me, tudo isso são manifestações de uma escolha mais original, mais espontânea do que aquilo a que chamamos de vontade. Porém, se realmente a existência precede a essência, o homem é responsável pelo que é. Desse modo, o primeiro passo do existencialismo é o de pôr todo homem na posse do que ele é de submetê-lo à responsabilidade total de sua existência. Assim, quando dizemos que o homem é responsável por si mesmo, não queremos dizer que o homem é apenas responsável pela sua estrita individualidade, mas que ele é responsável por todos os homens. A palavra subjetivismo tem dois significados, e os nossos adversários se aproveitaram desse duplo sentido. Subjetivismo significa, por um lado, escolha do sujeito individual por si próprio e, por outro lado, impossibilidade em que o homem se encontra de transpor os limites da subjetividade humana. É esse segundo significado que constitui o sentido profundo do existencialismo. Ao afirmarmos que o homem se escolhe a si mesmo, queremos dizer que cada um de nós se escolhe, mas queremos dizer também que, escolhendo-se, ele escolhe todos os homens. De fato, não há um único de nossos atos que, criando o homem que queremos ser, não esteja criando, simultaneamente, uma imagem do homem tal como julgamos que ele deva ser. Escolher ser isto ou aquilo é afirmar, concomitantemente, o valor do que estamos escolhendo, pois não podemos nunca escolher o mal; o que escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para nós sem o ser para todos. Se, por outro lado, a existência precede a essência, e se nós queremos existir ao mesmo tempo que moldamos nossa imagem, essa imagem é válida para todos e para toda a nossa época. Portanto, a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, pois ela engaja a humanidade inteira. Se eu sou um operário e se escolho aderir a um sindicato cristão em vez de ser comunista, e se, por essa adesão, quero significar que a resignação é, no fundo, a solução mais adequada ao homem, que o reino do homem não é sobre a terra, não estou apenas engajando a mim mesmo: quero resignar-me por todos e, portanto, a minha decisão engaja toda a humanidade. Numa dimensão mais individual, se quero casar-me, ter filhos, ainda que esse casamento dependa exclusivamente de minha situação, ou de minha paixão, ou de meu desejo, escolhendo o casamento estou engajando não apenas a mim mesmo, mas a toda a humanidade, na trilha da monogamia. Sou, desse modo, responsável por mim mesmo e por todos e crio determinada imagem do homem por mim mesmo escolhido; por outras palavras: escolhendo-me, escolho o homem.

Tudo isso permite-nos compreender o que subjaz a palavras um tanto grandiloqüentes como angústia, desamparo, desespero. Como vocês poderão constatar, é extremamente simples. Em primeiro lugar, como devemos entender a angústia? O existencialista declara freqüentemente que o homem é angústia. Tal afirmação significa o seguinte: o homem que se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas aquele que escolheu ser, mas também um legislador que escolhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade inteira, não consegue escapar ao sentimento de sua total e profunda responsabilidade. É fato que muitas pessoas não sentem ansiedade, porém nós estamos convictos de que estas pessoas mascaram a ansiedade perante si mesmas, evitam encará-la; certamente muitos pensam que, ao agir, estão apenas engajando a si próprios e, quando se lhes pergunta: mas se todos fizessem o mesmo?, eles encolhem os ombros e respondem: nem todos fazem o mesmo. Porém, na verdade, devemos sempre perguntar-nos: o que aconteceria se todo mundo fizesse como nós? e não podemos escapar a essa pergunta inquietante a não ser através de uma espécie de má fé. Aquele que mente e que se desculpa dizendo: nem todo mundo faz o mesmo, é alguém que não está em paz com sua consciência, pois o fato de mentir implica um valor universal atribuído à mentira. Mesmo quando ela se disfarça, a angústia aparece. [...] Tudo se passa como se a humanidade inteira estivesse de olhos fixos em cada homem e se regrasse por suas ações. E cada homem deve perguntar a si próprio: sou eu, realmente, aquele que tem o direito de agir de tal forma que os meus atos sirvam de norma para toda a humanidade? E, se ele não fazer a si mesmo esta pergunta, é porque estará mascarando sua angústia. Não se trata de uma angústia que conduz ao quietismo, à inação. Trata-se de uma angústia simples, que todos aqueles que um dia tiveram responsabilidades conhecem bem. Quando, por exemplo, um chefe militar assume a responsabilidade de uma ofensiva e envia para a morte certo número de homens, ele escolhe fazê-lo, e, no fundo, escolhe sozinho. Certamente, algumas ordens vêm de cima, porém são abertas demais e exigem uma interpretação: é dessa interpretação – responsabilidade sua – que depende a vida de dez, catorze ou vinte homens. Não é possível que não exista certa angústia na decisão tomada. Todos os chefes conhecem essa angústia. Mas isso não os impede de agir, muito pelo contrário: é a própria angústia que constitui a condição de sua ação, pois ela pressupõe que eles encarem a pluralidade dos possíveis e que, ao escolher um caminho, eles se dêem conta de que ele não tem nenhum valor a não ser o de ter sido escolhido. Veremos que esse tipo de angústia – a que o existencialismo descreve – se explica também por uma responsabilidade direta para com os outros homens engajados pela escolha. Não se trata de uma cortina entreposta entre nós e a ação, mas parte constitutiva da própria ação.

Quando falamos de desamparo, expressão cara a Heidegger, queremos simplesmente dizer que Deus não existe e que é necessário levar esse fato às últimas conseqüências.


 

Trad.: Rita Correia Guedes . Fonte: L'Existentialisme est un Humanisme, Les Éditions Nagel, Paris, 1970.

Um comentário:

Anônimo disse...

Profe a dona é eeemooooooo