Demétrio Magnoli . Você acredita em raças?
A Suprema Corte dos EUA estabeleceu, semanas atrás, por estreita maioria, que os direitos dos cidadãos não podem se sujeitar a critérios raciais. Mas as opiniões dos juízes da maioria e da minoria não contestaram o princípio de fundo, de que as pessoas podem ser classificadas pela pertinência a um grupo racial. A exceção apareceu na opinião do juiz Anthony Kennedy, que escreveu: "Quem exatamente é branco e quem é não-branco? Ser forçado a viver sob um rótulo racial oficial é inconsistente com a dignidade dos indivíduos na nossa sociedade."
A nação americana elaborou sua identidade através das lentes do conceito de melting pot: o caldo de componentes diversos, que se misturam mas jamais se fundem. Depois de abolida a escravidão, as leis de segregação reafirmaram a fronteira entre brancos e negros, colocando o problema de definir a raça de cada um. A regra da "gota de sangue única" forneceu a solução: para ser negro, basta um só antepassado negro. Nos EUA, essa experiência histórica converteu a raça num fenômeno natural, como os rios, as montanhas e as estrelas.
O Brasil não produziu leis raciais desde a Abolição, o que nos libertou do problema de associar cada pessoa a um grupo de raça. A identidade nacional foi elaborada em torno do conceito de mestiçagem. Essa experiência coagulou-se na aquarela brasileira, composta por um continuum de cores sem fronteiras nítidas, que se traduz na linguagem do censo pela ambígua categoria dos "pardos". Do ponto de vista científico, o Brasil está certo e os EUA, errados. A investigação genética comprova que a humanidade não se divide em raças.
Duas obras recentes oferecem uma visão dessas investigações de ponta. Em Genes, povos e línguas (Companhia das Letras, 2000), Luigi Cavalli-Sforza, que dirigiu o Projeto da Diversidade do Genoma Humano, delineia uma "geografia gênica", reconstruindo as migrações que difundiram os seres humanos pelo planeta. Em A invenção das raças (Contexto, 2007), Guido Barbujani, um dos mais destacados geneticistas contemporâneos, desmonta o mito das raças e esclarece o sentido do conceito de diversidade humana. Todas as populações atuais da Europa, Ásia, América e Oceania originaram-se dos grupos humanos que deixaram a África recentemente, entre 100 mil e 50 mil anos atrás, e representam subconjuntos do patrimônio genético africano. A diversidade é mais forte na África e diminui em relação direta com o afastamento da África. Somos todos afrodescendentes.
O voto de Kennedy é um sinal de que, na "pátria das raças", procura-se acertar o passo entre a política e a ciência. Enquanto isso, o Estado brasileiro entrega-se à operação inversa, investindo contra nossa experiência histórica para substituí-la pelo dogma da raça. O MEC obrigou as escolas a associar nominalmente cada aluno a um grupo racial. O Ministério da Saúde, por meio das carteiras do SUS, prega um rótulo racial a cada usuário do sistema público de saúde. Nas palavras de Kennedy, "é um rótulo que um indivíduo é impotente para mudar!".
Correio Geográfico - Agosto 2007 - Número 18 - Projeto de Ensino de Geografia
Nenhum comentário:
Postar um comentário